Além de suportar umas das mais elevadas cargas tributárias do mundo e de viver em um país onde os serviços públicos não são de boa qualidade, o cidadão brasileiro ainda convive com a ação desmedida dos agentes do Fisco, que podem a qualquer tempo vasculhar a sua conta bancária, sem que para isso o Judiciário seja chamado a se pronunciar. Diante desse cenário, tem o contribuinte o direito de manter inviolável a sua intimidade financeira? Sob quais parâmetros deve se pautar esta polêmica questão, declarada como de "repercussão geral", em recurso extraordinário submetido ao Supremo Tribunal Federal (RE 601.314- SP).
Em 2001, foi promulgada a Lei Complementar nº 105, que autoriza as instituições financeiras a fornecer informações sobre a movimentação das contas bancárias dos contribuintes, diretamente ao Fisco, sem prévia autorização judicial. Pois bem. A questão constitucional está em saber se há violação aos princípios que asseguram ser invioláveis a intimidade e o sigilo de dados, previstos no artigo 5º, incisos X e XII, da Constituição Federal.
No plenário do Supremo Tribunal Federal a votação foi apertada, no julgamento do recurso extraordinário 389.808 - Paraná, de relatoria do ministro Marco Aurélio. Em seu brilhante voto, o ministro atentou para o princípio da dignidade humana, sob o qual se funda a República Federativa do Brasil, e que norteia as relações internacionais, como estabelece o artigo 4º, II, da CF/88. Segundo o ministro, a vida gregária pressupõe segurança, estabilidade e a não surpresa, princípios estes incompatíveis com a violação do sigilo bancário de contribuintes pelo Fisco.
Nos termos da Constituição Federal de 1988, devem ser assegurados aos brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do sigilo das correspondências, e das comunicações telegráficas, de dados e telefônicas. O acesso ao Judiciário consta deste mesmo rol de garantias, visando a afastar lesão ou ameaça de lesão a direito. Por isso mesmo, não é dado ao Fisco fazer justiça com as próprias mãos, para satisfazer pretensão, mesmo que esta seja legítima, salvo quando a lei o permita, nos termos do que dispõe o artigo 345, do Código Penal.
A inviolabilidade garantida pela Constituição Federal prevê exceções. Mediante ato fundamentado, nas hipóteses e formas contempladas na lei, pode ser afastado o direito à inviolabilidade. Tal medida pode ser adotada levando-se em conta uma única finalidade - para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. Este foi o posicionamento majoritário do Supremo, no julgamento do recurso extraordinário. Nas palavras do ministro-relator, "a medida não pode ser utilizada como forma de devassa indiscriminada, sob pena de ofensa à garantia constitucional da intimidade".
Abusos fiscais são diariamente encontrados na sociedade
Foram contrários a este posicionamento quatro dos onze ministros que compõem o Supremo Tribunal Federal. Um dos ministros contrários ao direito à intimidade financeira fundamentou seu voto no artigo 145, parágrafo 1º, do Código Tributário Nacional (CTN), dando ao referido dispositivo a interpretação de que cabe à administração tributária identificar, respeitados os direitos e garantias individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte. Afirmou não se tratar o caso de quebra de sigilo bancário, esta sim ilícita, mas de "transferência do dever de manter o sigilo".
No entanto, a interpretação dada ao dispositivo modificou a finalidade do artigo, cujo objetivo é dar aos impostos o caráter pessoal, de acordo com a capacidade contributiva de cada contribuinte. Da leitura do dispositivo, verifica-se que a intenção do legislador originário foi facultar à administração tributária identificar o patrimônio, rendimentos e atividades econômicas do contribuinte, apenas para a finalidade especial de conferir efetividade aos objetivos traçados pelo dispositivo, como o de conferir o caráter pessoal aos impostos, bem como graduá-los de acordo com a capacidade econômica do sujeito passivo. Pela leitura integral do parágrafo 1º do artigo 145 (CTN), não é possível extrair a interpretação de que pode a administração tributária ter acesso a dados bancários de contribuintes, sem prévia requisição ao Poder Judiciário.
Alegou também um dos ministros, na ocasião do julgamento, que todos os cidadãos, como contribuintes, são obrigados, por força de lei, a declarar anualmente todos os seus bens à Receita Federal do Brasil, por que então não permitir ao Fisco o livre acesso aos dados bancários?
Uma coisa é o cidadão, ciente de seus deveres e obrigações, entregar às autoridades informações a ele concernentes para o correto exercício de suas atribuições. Outra coisa é a administração pública, sem respaldo jurídico algum, dirigir-se ao cidadão e arrancar-lhe o que quer que seja, sem sua permissão. Abusos e excessos fiscais cometidos pelo poder público são condutas diariamente encontradas na sociedade. Imagine-se o que poderá ocorrer se a este poder público não forem impostos limites em suas relações com o cidadão, que não é detentor dos mesmos poderes que o Estado e seus representantes.
É importante lembrar, por fim, que a administração pública, apesar de realizada por meio de suas instituições, é levada à frente por seres humanos, cuja atuação profissional pode em alguma medida ser contaminada por interesses pessoais, que não se coadunam com o interesse público, ou mesmo por erros involuntários, de boa-fé. As regras sob as quais se estabelecem as relações entre cidadão e Estado devem garantir um mínimo de equilíbrio e segurança, para que as duas partes possam interagir em relação de igualdade. É evidente que não se trata de uma igualdade material, mas ao menos formal, de modo a garantir a inviolabilidade dos direitos e garantias fundamentais do cidadão.
Texto confeccionado por: Ana Flávia Magno Sandoval
Fonte: Site contábil
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