A decisão da presidente Dilma Rousseff (PT) de colocar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como seu novo ministro da Casa Civil é, segundo integrantes do partido, para que ele possa ajudar o país a sair da atual crise política-econômica.
A nomeação, no entanto, ocorre no momento em que Lula é investigado na operação “lava jato” e teria como objetivo não declarado retirar do juiz Sergio Moro a condução dos processos contra ele. Por se tornar ministro, o ex-presidente teria a chamada prerrogativa de foro por função, cabendo ao Supremo Tribunal Federal o julgamento das ações.
Porém, o tiro pode sair pela culatra, e o caso de Lula continuar na Justiça Federal do Paraná. Isso porque, a partir da Constituição de 1988, o Supremo tem zelado pela estrita observância do princípio do juiz natural, sempre que identificada alguma tentativa de fraude.
Em 1993, o STF já começava a manifestar a defesa do juiz natural, garantindo a independência e autonomia do Poder Judiciário. Na ocasião, a corte julgava o Mandado de Segurança 21.245. Ao proferir seu voto, o ministro Paulo Brossard identificou que o autor da ação tentou enganar o Supremo para tirar da corte o julgamento, inserindo no polo passivo uma parte indevidamente, apenas para que o caso fosse analisado por outra corte.
Disse o ministro na ocasião: “A ação deveria ser ajuizada perante o Supremo Tribunal, mas foi utilizado um disfarce para desviar do Supremo Tribunal a apreciação do caso, uma vez que o Supremo Tribunal já havia decidido a respeito; a fim de adiar a execução da resolução do Senado e da ordem de sua Mesa Diretora, foi indicada como autoridade coautora quem não o era. (…) Por isso, senhor presidente, entendo que o Supremo Tribunal, num caso desta singularidade, com particularidades tais, não pode fechar os olhos à realidade e deve afirmar a sua autoridade, decidindo a questão com o poder que lhe é próprio, e não se sujeitando a interesses que podem ser muito defensáveis, mas a interesses muito pessoais e que, data venia, estão a ludibriar o órgão máximo da Justiça da República”.
Na atualidade, o Supremo Tribunal Federal tem garantido a observância do princípio do juiz natural, seja qual for a natureza do expediente fraudulento ou da matéria em julgamento.
No MS 26.860, julgado em 2015 pelo Plenário do STF, o ministro Luiz Fux abordou a questão, na perspectiva da Lei do Mandado de Segurança. Segundo ele, aceitar a admissão de assistentes litisconsorciais após o deferimento da medida liminar fere os princípios do juiz natural e da livre distribuição.
“Isso porque a tentativa de ingressar no feito, como autor, após o deferimento da liminar, permite ao requerente escolher o juízo que já se manifestou favoravelmente à sua tese — o que não é permitido em nosso ordenamento jurídico, consoante entendimento jurisprudencial que se torna regra jurídica encontrada no artigo 10, § 2º, da Lei 12.016/09”, justificou.
No mesmo caso (MS 26.860), o ministro Dias Toffoli, para preservar a autoridade do juiz natural, ressaltou que o próprio Supremo Tribunal Federal desautorizou a edição fraudulenta de lei.
“Destaco que a Suprema Corte superou o entendimento de que a ação direta de inconstitucionalidade se extingue quando a norma objeto de impugnação é revogada, ante a possibilidade de a extinção dar azo a fraude processual, furtando-se os jurisdicionados ao efeito erga omnes e à eficácia ex tunc própria dos provimentos de mérito nas ações do controle concentrado de constitucionalidade.”
No mesmo sentido, manifestou-se o ministro Ricardo Lewandowski: “Acompanho o eminente Relator nesse aspecto, porque esta caracterizada uma fraude processual, em que se quer frustrar o Tribunal, não permitindo que ele examine o mérito da questão que já lhe foi apresentada”.
Distribuição de Justiça
Também na competência penal, o Supremo Tribunal Federal repudiou a manipulação ilícita do sistema de distribuição de justiça. Na Ação Penal 396, o réu, deputado federal Natan Donadon, renunciou ao mandato, na véspera da sessão de julgamento.
A estratégia, porém, não deu certo. O Supremo considerou a renúncia um ato legítimo, mas destacou que isso ato não serve como pretexto para deslocamento de competência. “Renúncia de mandato: ato legítimo. Não se presta, porém, a ser utilizada como subterfúgio para deslocamento de competências constitucionalmente definidas, que não podem ser objeto de escolha pessoal. Impossibilidade de ser aproveitada como expediente para impedir o julgamento em tempo à absolvição ou à condenação e, neste caso, à definição de penas”, diz a ementa da decisão.
Quando ainda estava no Superior Tribunal de Justiça, o ministro Teori Zavascki também se posicionou contra a manipulação ilícita do sistema de distribuição de justiça. Ao julgar o Conflito de Competência 87.643/PR, Teori destacou que a redação do artigo 253, inciso II, do CPC dada pela Lei 11.280/2006 tem como objetivo preservar o princípio do juiz natural, pondo-o a salvo de manobras decorrentes de sucessivas desistências e reproposituras da mesma demanda.
“O caso dos autos enquadra-se na situação que o legislador quis coibir: a reiteração, através de nova ação, de pedido idêntico ao veiculado em ação anterior, que havia sido extinta sem julgamento do mérito, em razão da desistência do autor posteriormente ao indeferimento de medida liminar. Não é relevante, na hipótese, a distinta natureza das ações cotejadas”, explicou o ministro.
Apoio do Legislativo
A importância do princípio do juiz natural também tem sido reforçada pelo Poder Legislativo. Em 2000, a Presidência da República encaminhou mensagem ao Poder Legislativo com a primeira proposta de alteração do artigo 253, do CPC, com o objetivo de obstar as “distribuições conduzidas”.
A proposta era alterar o caput do artigo 253 para que a distribuição fosse feita por dependência não apenas nos casos de conexão ou continência com outro feito já ajuizado, mas também nos de ações repetidas que tratem de questão idêntica. Assim, evitaria-se uma ofensa ao juiz natural que acontecia em grandes cidades.
Para garantir seu sucesso, o advogado ingressava com várias ações similares simultaneamente em diferentes varas. Naquelas que o pedido de liminar era negado, ele desistia da ação e pedia litisconsórcio sucessivo ou assistência litisconsorcial naquelas em que saía vencedor.
A alteração desse artigo do CPC foi inclusive sugerida pelo Tribunal Regional Federal da 1 ª Região, em 1994. O projeto avançou no Congresso Nacional e resultou na Lei 10.358/2001, que alterou o artigo 235 do CPC, que ficou da seguinte maneira:
Art. 253. Distribuir-se-ão por dependência as causas de qualquer natureza:
I – quando se relacionarem, por conexão ou continência, com outra já ajuizada;
II – quando, tendo havido desistência, o pedido for reiterado, mesmo que em litisconsórcio com outros autores.
Em 2002, o próprio Plenário do Supremo Tribunal Federal (MS 24.159-QO) desqualificou, como “indício claro de litigância de má-fé”, a “obtenção de resultado favorável em juízo aparentemente incompetente”. Na ocasião, a ministra Ellen Gracie sintetizou a questão dessa maneira: “Não se podem erigir as garantias processuais para respaldar resultados espúrios de uma prestidigitação forense. Não é para isso que elas foram construídas através de séculos de civilização”.
Em 2004, teve início uma nova alteração no artigo 253 do CPC. Novamente a Presidência da República encaminhou mensagem ao Poder Legislativo, propondo uma nova mudança com a seguinte justificativa: “As alterações ao artigo 253 do CPC ampliam os casos de distribuição por dependência, privilegiando o princípio do juiz prevento como sendo o ‘juiz natural’, assim sendo impedidas manobras tais como o ajuizamento sucessivo de demandas idênticas até ser ‘encontrado’ um juiz que defira a liminar pretendida pela parte”.
Este segundo projeto também foi aprovado no Congresso Nacional, resultando na Lei 11.280/06. Com isso, o artigo 253 ficou ainda mais alinhado com a proteção ao princípio republicano do juiz natural:
Art. 253. Distribuir-se-ão por dependência as causas de qualquer natureza:
II – quando, tendo sido extinto o processo, sem julgamento de mérito, for reiterado o pedido, ainda que em litisconsórcio com outros autores ou que sejam parcialmente alterados os réus da demanda;
III – quando houver ajuizamento de ações idênticas, ao juízo prevento.
Fonte: Jornal Contabil